Um tesouro guardado há cerca de 90 milhões de anos corre o risco de desaparecer nas terras de General Salgado, a 110 quilômetros de Rio Preto. O aumento das plantações de cana-de-açúcar ameaça os sítios paleontológicos da região, onde foram encontrados esqueletos de crocodilos pré-históricos a partir do início da década de 1990 e, recentemente, uma costela e dentes de dinossauros.
As plantações de cana-de-açúcar em 21 municípios da região de General Salgado cresceram 11 vezes nos últimos 19 anos, desde a descoberta do primeiro fóssil. No período, a área destinada à monocultura saltou de 15 mil para 164 mil hectares. A situação preocupa pesquisadores, que se dizem cansados de pedir apoio ao governo local por não terem nenhuma garantia da preservação das áreas, localizadas em propriedades rurais particulares, de onde foram retirados os fósseis.
Problemas
Em algumas situações, a plantação de cana está a menos de 50 metros dos cemitérios de fóssil, o que impede a descoberta de novas rochas, segundo os estudiosos. “Tem lugar que a rocha está só a 30, 40 centímetros debaixo da terra. Se o fóssil estiver na superfície, pode ser destruído por uma grade que prepara o solo para a plantação, por exemplo”, afirma o professor aposentado João Tadeu Arruda, que acompanhou todas as descobertas na região.
Os outros problemas seriam o transporte da cana e as erosões. “Os veículos que circulam entre as plantações são pesados e também podem prejudicar os esqueletos. E por último tem as erosões. Mesmo que a área seja bem preparada para o cultivo, sempre ocorre o desvio do trajeto da água das chuvas, o que pode provocar erosões nos jazigos.”
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O professor J. Tadeu Arruda em campo GS |
Para o pesquisador Kleber Varnier, falta apoio da prefeitura aos trabalhos. “Infelizmente, a exploração de fósseis de milhões de anos, com toda sua importância científica, não dá lucro para ninguém. Já a usina, que gera receitas e empregos, tem todo o amparo dos políticos. É esse pensamento que cria obstáculos e ameaça nossos estudos”, diz o paleontólogo. O diretor da usina Generalco, João Arantes, foi procurado pelo Diário para comentar o assunto, mas não foi encontrado.
Reconhecimento
Um dos seis sítios paleontológicos catalogados na região foi reconhecido no final de 2009 pela Comissão Brasileira dos Sítios Geológicos e Paleobiológicos (Sigep), instituição ligada ao Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). Trata-se de uma área em Prudêncio e Moraes, distrito de General Salgado, onde foram descobertos os primeiros fósseis. Outros três sítios também estão localizados no município, sendo dois no distrito de São Luiz de Japiúba. Os dois terrenos restantes ficam em cidades vizinhas, Auriflama e São João de Iracema.
O projeto do reconhecimento foi aprovado por oito dos órgãos que representam a Sigep, entre eles a Sociedade Brasileira de Paleontologia, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e a Petrobras. Para o professor Ismar de Souza Carvalho, do Departamento de Geologia da Universidade Federal do Rio Janeiro (UFRJ), responsável pela elaboração do projeto, o reconhecimento pode trazer melhores condições aos pesquisadores. “Agora, ações para captação de recursos visando à amplificação de sua relevância se tornam mais fáceis de serem aprovadas.” O reconhecimento, no entanto, não significa preservação garantida. Para isso, segundo Carvalho, é necessário a criação de um projeto na própria cidade.
Prefeitura tem interesse, diz gestor
A reportagem do Diário procurou o prefeito de General Salgado, Mauro Gilberto Fantini, na sexta-feira. Na prefeitura, a informação fornecida pela secretária dele, que se identificou como Carina, era de que o prefeito estava em Iturama (MG) e só retornaria amanhã. Fantini também não atendeu as ligações em seu celular.
Segundo o gestor ambiental da prefeitura, Márcio Castilho, a prefeitura tem, sim, intenção de auxiliar os estudos dos fósseis. “No ano passado o prefeito discutiu o projeto de um museu, que guardaria os materiais retirados dos sítios”, disse. Outra ação estudada pelo governo municipal, de acordo com o funcionário, seria a compra ou o aluguel (arrendamento) dos cerca de 20 hectares de onde os fósseis foram retirados.
“Seria muito importante para a preservação dos sítios, mas a prefeitura ainda precisa arranjar parceiros na iniciativa privada para isso. O investimento seria alto.” As boas intenções da prefeitura, todavia, não convencem o pesquisador João Tadeu Arruda. “Desde a descoberta dos fósseis, há quase 20 anos, já tivemos quatro prefeitos. Conversei pessoalmente com cada um deles várias vezes. Tentei convencê-los de que essas terras são iguais a um ‘cofre’ que guarda uma riqueza sem tamanho, mas ninguém me ouviu. Só ficou mesmo nas conversas, no blábláblá.”
Usina
O diretor da usina Generalco, João Arantes, também foi procurado pelo Diário para comentar o assunto. No entanto, ele não foi localizado na empresa nem na unidade do grupo em Araçatuba.
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O pesquisador Kleber Varnier com uma ossada
de um Baurusuchuss CPGU-GS & muuHtus:: |
Pelo menos no papel, General Salgado já tem um laboratório e um museu destinados aos estudos e à divulgação da paleontologia. O projeto, elaborado pelos pesquisadores
Kleber Varnier, de Rio Preto, e Thiago da Silva Marinho, da Universidade Federal do Rio Janeiro (UFRJ), com ajuda de uma empresa americana, prevê investimentos de R$ 440 mil. O documento sugere a construção de um imóvel na cidade, onde seria realizada a preparação e a documentação dos fósseis, além de abrigar pesquisadores de outros municípios durante as expedições. Materiais hoje guardados em museus e universidades de todo o País seriam trazidos de volta a General Salgado para a montagem de uma exposição permanente. “A ideia seria envolver a população local nas pesquisas. Explicar aos moradores a importância da preservação desse material, que é valiosíssimo. Muita gente na cidade nunca viu um fóssil”, afirma Varnier. O projeto, de acordo com o pesquisador rio-pretense, já foi aprovado em uma primeira avaliação pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). No entanto, para liberação dos recursos seria necessária a criação de uma nova secretaria na prefeitura, o que não foi feito.
“Em reuniões com o prefeito, até nos foi sugerido alguns locais para instalação do museu. Mas depois não aconteceu mais nada.” Se o museu for montado, Varnier diz que já tem um grande material para exposição. “Nos últimos cinco anos documentei mais de 30 expedições aos jazigos. Tenho mais de dez mil fotos e quatro mil horas de filmagens.” Entre locação de equipamentos, viagens e gastos com a empresa de consultoria, o pesquisador diz ter investido cerca de R$ 50 mil do próprio bolso no projeto.
Grupo acha costela de 1,2 m de titanossauro
A descoberta de fósseis de dinossauros em um sítio paleontológico de Auriflama, município vizinho a General Salgado, trouxe novo fôlego às pesquisas na região. Os materiais, encontrados por um grupo de pesquisadores da Fundação Educacional de Fernandópolis (FEF), pertencem a titanossauros e terópodes. Até então, só se sabia que a área preservava esqueletos de crocodilos pré-históricos.
Do titanossauro foram encontrados fragmentos de fósseis e uma costela de 1,2 metro. Apesar do tamanho relativamente grande, o osso corresponde a uma das menores costelas do animal, que podia alcançar 12 metros de comprimento, 6 metros de altura e pesar 15 toneladas. Herbívoro, o titanossauro é reconhecido como um dos maiores dinossauros que viveram no Brasil.
O fóssil, guardado na faculdade de Fernandópolis, é estudado por pesquisadores da região, da Universidade de Brasília (UnB) e da Universidade de Bristol, na Inglaterra. O professor de geologia e biologia Carlos Eduardo de Oliveira, da FEF, afirma que buscará recursos junto a órgãos de incentivo à ciência, como a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), para encontrar outros ossos do animal.
“Nosso objetivo é encontrar todo o esqueleto, analisar o material e fazer uma publicação em revista científica. É um trabalho difícil, pois nem todos os ossos podem estar tão bem conservados como a coluna que retiramos.” Além da costela do herbívoro, os pesquisadores também localizaram no sítio de Auriflama dentes de um carnívoro da família terópode, a mesma do tiranossauro. No entanto, os dentes pertenciam a um animal de pequeno porte, com cerca de um metro de altura.
Para a bióloga Ariane Gabas Martins, que também participou da descoberta da coluna de titanossauro, a falta de incentivo atrapalha os estudos. “O que nos move é a curiosidade, a vontade de aprender mais. Tudo o que gastamos sai do nosso bolso. Se tivéssemos mais apoio dos órgãos do governo, poderíamos encontrar vários outros fósseis de dinossauro.”
A notícia da descoberta de fósseis de dinossauros em Auriflama não surpreendeu o pesquisador Antonio Celso de Arruda Campos, diretor do Museu de Paleontologia de Monte Alto, cidade na região de Ribeirão Preto. Segundo Arruda, a Bacia Bauru, que abrange os Estados de São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Goiás e região nordeste do Paraguai, é privilegiada. “Muitos dinossauros viveram na região. Infelizmente nossos estudos ainda estão muito atrasados pela falta de apoio às iniciativas científicas.”
Rio Preto
Um fóssil de titanossauro também já foi encontrado em Rio Preto, em 1962. A descoberta foi feita por trabalhadores que abriam a rodovia Assis Chateaubriand (SP-425), entre Rio Preto e Guapiaçu. A documentação do material foi conduzida pelos professores Fahad Moysés Arid e Luiz Dino Vizotto. Na época, a descoberta tornou a Fafi (Ibilce/Unesp) um centro de referência paleontológica. Parte do fóssil do dinossauro está exposta no Centro Integrado de Ciência e Cultura (CICC), no Distrito Industrial.
Ossos estão espalhados pelo País
Os sítios paleontológicos em General Salgado começaram a ser descobertos em novembro de 1990, a partir da curiosidade de um aluno e de um professor. Tudo teve início quando Clésio Felício, então estudante da 6ª série e com 13 anos, encontrou o dente serrilhado de um animal numa estrada em obras na zona rural. O objeto revelou o elo perdido com o passado remoto.
Curioso sobre a origem do pequeno pedaço calcificado, o aluno procurou um de seus professores, João Tadeu Arruda, conhecido por seu interesse pela pré-história. “Quando vi aquilo achei muito estranho. Não sabia se era um dente ou uma unha. Mas na mesma hora percebi que se tratava de um fóssil”, recorda Arruda. Após a aula, professor e aluno foram até a estrada em obras em busca de mais vestígios. Tudo o que foi achado foi enviado ao Museu de Paleontologia de Monte Alto, que poderia desvendar o mistério.
Apoio
Quando percebeu a riqueza do material, o diretor do museu, Antonio Celso de Arruda Campos, não teve dúvidas: convocou a equipe do Departamento de Geologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com quem já trabalhava, para coordenar os estudos. Após 19 anos, seis sítios paleontológicos foram catalogados na região.
Os estudos revelaram à ciência duas novas espécies de crocodilos pré-históricos, o Baurusuchus salgadoensis e o Armadillosuschus arrudai. Os 12 esqueletos de crocodilos e centenas de fósseis fragmentados, incluindo parte da vértebra de uma serpente, estão espalhados por museus e universidades do País, como o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, e a Universidade de São Paulo (USP).
Clima
O clima do período cretáceo superior, entre 99,6 milhões e 65,5 milhões de anos atrás, era muito mais quente e seco que o atual. Essa condição, somada a um hábito dos répteis, colaborou para a preservação dos fósseis. Toda a região oeste do Estado era ocupada por amplos rios e lagos temporários. De acordo com os estudos, durante a estiagem, os crocodilos se agrupavam em pequenas lagoas para esperar a próxima chuva - hábito comum aos crocodilos de hoje.
A maior armadilha para essa espécie estava no próprio tempo. Quando a lagoa secava, os animais se enterravam na lama para manter a umidade do corpo. Caso as chuvas não voltassem, eles acabavam morrendo desidratados. O agrupamento da espécie, como forma de proteção, ocasionava uma situação conhecida como assembleia da morte. Agrupados, os animais ficavam expostos aos alagamentos gigantescos e rápidos que se formavam com o retorno das chuvas.
O desequilíbrio caracterizado pelos longos períodos de seca, seguidos por precipitações torrenciais, causava a mortandade de um grande número de espécies da fauna e da flora. Eram verdadeiras catástrofes ecológicas que, segundo os pesquisadores, possibilitaram a preservação de muitos organismos na forma de fósseis.
Bichos viveram há 99 milhões de anos
Apesar de os fósseis serem a grande atração dos sítios paleontológicos da região, eles não são o único foco de estudo dos pesquisadores, que também querem entender as condições de vida no período conhecido como cretáceo superior, compreendido entre 99,6 milhões e 65,5 milhões de anos atrás. Além dos esqueletos, outros vestígios, como ovos, fezes, pegadas e rastros, por exemplo, datam daquela época.
No cretáceo superior, América do Sul, África, Índia, Antártica e Austrália estavam juntas numa grande massa terrestre - o antigo continente Gondwana, que começava a se romper e a se separar. Animais semelhantes aos crocodilos de General Salgado foram encontrados no Paquistão. Para alcançar regiões da Ásia, eles teriam viajado junto com uma porção de terra que se deslocou da América do Sul em direção ao que hoje é a Índia.